Escolas apostam no diálogo e na criatividade para ensinar sobre guerras e conflitos de polarização
Iniciativas incluem simulação de debate da ONU, peças de teatro e conteúdos elaborados a partir dos interesses dos estudantes
A guerra entre Rússia e Ucrânia, o conflito entre Israel e Palestina e o avanço de nacionalismos pelo mundo são temas que aparecem todos os dias nos noticiários e nas redes sociais. Mas como levá-los para a sala de aula?
Professores e autores que trabalham com o ensino de geopolítica apontam que há resistências e desafios, sobretudo em um cenário de polarização política e imediatismo dos alunos. Ainda assim, experiências em escolas e projetos culturais mostram caminhos possíveis, que passam pelo diálogo e pela criatividade.
Aulas partem dos interesses dos alunos
No Colégio Santa Doroteia, em Porto Alegre, o professor de História João Camilo Grazziotin Portal parte das perguntas dos próprios estudantes para organizar os conteúdos. A metodologia, chamada "cartografia de interesses", busca aproximar os temas da realidade dos jovens.
— No início do ano, pergunto o que eles querem estudar dentro de um eixo temático. A partir disso, construímos juntos o roteiro das aulas — explica Portal.
A prática ocorre nas aulas do itinerário formativo (parte flexível do currículo na qual o aluno pode escolher uma área para se aprofundar) denominada Conexões Globais e Cidadania. O professor lamenta que este, que é o itinerário mais focado em Ciências Humanas, tenha atraído menos de 10 estudantes em um universo de cerca de cem.
Professor parte de perguntas dos próprios estudantes para organizar os conteúdos.Jonathan Heckler / Agencia RBS
Estudando o autoritarismo
Em um dos trimestres, a turma quis entender "por que pessoas se tornam nazistas". O professor usou fotos que tirou do museu Topografia do Terror, em Berlim, trechos da obra da filósofa Hannah Arendt e o filme Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, para mostrar como ideologias autoritárias ganham espaço em sociedades frustradas.
A partir daí, a turma quis entender a ascensão do conservadorismo em nível global e questões ligadas ao nacionalismo. Agora, entraram em uma parte do conteúdo ligada a conflitos nacionalistas do Oeste Europeu, em especial a guerra entre Rússia e Ucrânia.
— Acredito que a escola, sobretudo a aula de História, deve servir para a formação sociocultural dos estudantes também — avalia o professor.
Desafios em tempo de respostas rápidas
Para Portal, em uma realidade na qual as pessoas leem menos jornal e há tanta desinformação, a escola precisa ajudar na criação de uma base sociocultural para suas crianças e adolescentes. Um desafio é o engajamento dos alunos em um tempo de respostas rápidas.
— O mais difícil é tentar criar no estudante o desejo pelo conhecimento, porque isso não dá resultado imediato. Muitas vezes, o aluno só vai perceber a importância do que aprendeu anos depois — afirma.
O que Portal procura é que a sala de aula seja um espaço de diálogo de ideias, mesmo quando os conteúdos envolvem diferentes pontos de vista sociopolíticos, econômicos, morais, éticos e ideológicos.
Para Portal, tentar criar no estudante o desejo pelo conhecimento é um desafio.Jonathan Heckler / Agencia RBS
Alunos viram "diplomatas" para debater temas
No Colégio Madre Imilda, de Caxias do Sul, temas da atualidade são trazidos nas aulas de Sustentabilidade, destinadas às turmas da 2ª série do Ensino Médio. O trabalho é realizado por meio do estudo dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) para serem cumpridos até 2030.
Todos os objetivos são abordados ao longo do ano durante o período semanal da disciplina, ministrada pelo professor de História e Geografia Rodrigo Oliveira. Quando foi tratado o ODS sobre educação de qualidade, por exemplo, foi organizada uma simulação de uma reunião da ONU na qual os adolescentes se tornaram "diplomatas".
— Cada trio de alunos recebeu o nome de um país e precisou estudar sobre como funcionava a educação lá. Depois, fizemos um debate, como se fosse a ONU, falando sobre esses sistemas. Dessa forma, os alunos puderam observar as diferenças e semelhantes da educação nesses países em relação ao Brasil — relata o professor.
Jogos de tabuleiro e peças de teatro
Segundo Oliveira, os trabalhos com assuntos atuais costumam engajar bastante os estudantes, diferentemente de conteúdos mais antigos.
— Às vezes, estou dando aula sobre a Guerra Fria, por exemplo, e para eles isso é muito complexo, porque eles não vivenciaram essa época. Se eu trago a Guerra Fria para esses ODSs e relaciono com situações como a de Israel e Palestina, fica muito mais interessante — analisa o professor.
Temas da atualidade, como geopolítica, história e geografia, também são tratados em um grupo de jogos de tabuleiro de RPG criado por ele, com atividades extracurriculares que ocorrem uma vez por mês.
Outro espaço no qual conflitos mundiais são trazidos de forma lúdica é um projeto de realização de peças de teatro, também capitaneado por Oliveira, que adapta obras como A Revolução dos Bichos, de George Orwell, Os Miseráveis, de Victor Hugo, e Um Conto de Natal e Oliver Twist, ambos de Charles Dickens, para trabalhar com as turmas de 8º ano as grandes revoluções ao longo da história. Recentemente, um trecho de O Continente, da trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, apresentou aos alunos elementos da Revolução Farroupilha.
Alunos do Colégio Madre Imilda, de Caxias, encenaram trecho de "O Continente", de Erico Verissimo, para aprender sobre a Revolução Farroupilha.Margô Segat / Colégio Madre Imilda / Divulgação
Cordel para falar de refugiados
O poeta Moreira de Acopiara também encontrou na arte uma forma de tratar de um assunto atual: a questão dos refugiados. Por meio da literatura de cordel — estilo popular de poesia associado ao nordeste brasileiro —, escreveu o livro A Longa Caminhada de Jamil Fugindo da Guerra (Cortez Editora), com ilustrações de Luciano Tasso, no qual um imigrante deixa a família em busca de sobrevivência.
— Convivo com muitos imigrantes. Quando ouvi a história desse cidadão, percebi que poderia transformá-la em cordel. A linguagem é acessível, curta, rimada e ajuda a criar empatia — diz o autor.
Adotado em turmas do Ensino Fundamental de escolas paulistas, o livro tem provocado perguntas dos alunos: por que Jamil deixou a família? Por que não ficou em seu país?
Para Moreira, o ensino de temas como a migração precisa começar cedo:
— As crianças devem compreender por que pessoas deixam seus países e chegam aqui em busca de acolhimento. Isso ajuda a formar cidadãos mais solidários.
Outra iniciativa que traz assuntos da atualidade para crianças e adolescentes é o Jornal Joca. Voltado a essa faixa etária, o portal traz notícias online, mas também tem distribuição de exemplares físicos e conta com espaços específicos para famílias, professores e escolas, que recebem materiais de apoio como quizes, cursos de formação e podcasts para abordar assuntos do cotidiano com os pequenos.
Ilustração de Luciano Tasso para livro de Moreira de Acopiara que conta a história de um refugiado.Luciano Tasso / Cortez Editora / Divulgação
Construindo uma visão de mundo
Para o professor Nestor Kaercher, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as escolas precisam garantir espaço para discussão de temas controversos, sem censura a docentes.
— A escola é justamente o espaço-tempo em que as diferenças e divergências devem aparecer. Se eu não discutir isso em sala de aula, mediado por um adulto, onde é que eu vou fazer isso? — questiona.
Segundo o pesquisador, professores vivem hoje pressões que vão de vigilância de pais a autocensura. Kaercher cita relatos de docentes que evitam abordar determinados assuntos por medo de represálias:
— Isso, a médio e longo prazo, produz mais intolerância e mais ignorância.
No entendimento do professor, o enfraquecimento das disciplinas de humanidades, como Geografia, História e Sociologia, dificulta a formação crítica:
— Não existe educação neutra ou apenas científica. Sempre que estou dando aula, estou passando uma visão de mundo.
Passar uma visão de mundo, explica ele, não significa "catequizar" alunos, mas expô-los a diferentes perspectivas:
— Eu não levo meu filho para a escola para catequizá-lo com as ideias que eu já tenho. Tenho que levar para ele conviver com outras ideias e construir sua visão de mundo.
Como abordar geopolítica com estudantes
Veja sugestões de fontes ouvidas para esta reportagem:
- Perguntas dos alunos: professores podem começar o ano levantando os interesses da turma. Em casa, pais podem perguntar o que os filhos ouviram nas redes ou na TV sobre conflitos internacionais
- Recursos culturais: filmes, livros e músicas ajudam a contextualizar temas complexos. A análise de obras como o filme Zona de Interesse, por exemplo, pode abrir espaço para debates sobre memória histórica e nacionalismo
- Histórias pessoais: relatos de imigrantes e refugiados, como no cordel de Moreira de Acopiara, tornam o tema mais próximo e humano
- Contraditório: permitir que alunos expressem opiniões divergentes ajuda a exercitar o pensamento crítico e evita a sensação de doutrinação
- Raízes históricas: conflitos atuais quase sempre têm origens antigas. Mostrar essa continuidade ajuda a compreender o presente
- Liberdade docente: pais e escolas devem respeitar o espaço do professor para abordar temas sensíveis, garantindo um ambiente de pluralidade
Fonte: Zero Hora
Foto: Jonathan Heckler / Agencia RBS
Outras notícias
-
Como equilibrar segurança, aprendizado e lazer no contraturno escolar
Oferta vai de esportes e artes a reforço pedagógico, mas especialistas alertam para a importância de levar em conta a carga de atividades A vida é corrida: as famílias trabalham o dia inteiro e a logística pa ...
Saiba Mais -
"Foi difícil crescer sem ela": feminicídios deixam um órfão a cada quatro dias no RS
Somente em 2025, 74 filhos perderam a mãe após 58 casos de feminicídio no Estado. Recente decreto prevê que dependentes de até 18 anos ganhem pensão, o que antes só era possível via ação judicia ...
Saiba Mais