Mais de um ano após enchente, quase 20 mil pessoas atingidas aguardam por uma nova casa no RS
Até o momento, 5,7 mil imóveis foram entregues por meio do programa Compra Assistida
As moradoras de Porto Alegre Marisa da Silva Santos, 60 anos, e Priscila Aparecida Oliveira da Silva, 40, têm muito em comum. Mãe e filha, elas foram atingidas pela enchente de maio de 2024, perderam suas casas na região das Ilhas e precisaram recorrer a outras pessoas para ter onde morar. Mas, agora, uma condição fundamental as diferencia: enquanto Priscila recebeu a chave de um novo lar e prepara a mudança, Marisa segue na fila por um teto próprio e troca de endereço com frequência à mercê de favores. Mais de 15 meses após o desastre que devastou grande parte do Rio Grande do Sul, os desalojados da cheia ainda se dividem entre aqueles que conseguiram uma nova moradia e quem segue aguardando — e o grupo dos que se mantêm à espera, a exemplo de Marisa, é o mais numeroso.
Conforme dados levantados por Zero Hora junto à Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, do governo federal, à Secretaria Habitação e Regularização Fundiária do Estado (Sehab) e à Caixa, 19,4 mil pessoas estão na fila de algum programa destinado a quem perdeu a casa na enchente, enquanto 5,7 mil foram contempladas — o equivalente a 23% da demanda contabilizada até o começo de setembro. A União e o Piratini sustentam que fatores como a necessidade de revisar cadastros para evitar fraudes, dificuldades para localizar terrenos ou residências adequados e questões legais estão entre as razões para a demora.
O acompanhamento das entregas de moradias aos atingidos pela enchente é uma das funções do Painel da Reconstrução, ferramenta desenvolvida pelo Grupo RBS.
Há diferentes possibilidades para quem foi desabrigado pelo aguaceiro ser beneficiado por um imóvel de forma definitiva. Por enquanto, o caminho mais curto rumo a uma nova morada passa pelo programa federal Compra Assistida. Desenhado para atender de forma mais rápida os gaúchos castigados pela inundação, replicado recentemente em outros pontos do país, como São Paulo, permite a aquisição de imóveis já prontos de até R$ 200 mil para famílias de baixa renda. Todos os beneficiados até agora no Estado conseguiram se reinstalar por meio desse programa.
Há também previsão de construção de novas casas para atender todos os necessitados. O governo do Estado prevê repassar 2,8 mil unidades pelo programa A Casa é Sua — Calamidade. Conforme nota da Sehab, as obras estão em diferentes estágios conforme o município — os lotes mais adiantados estão nas cidades de Nova Bréscia (25 casas) e Salvador do Sul (28). Por parte da União, a assessoria de comunicação da Caixa informa que foram contratados 44 empreendimentos em solo gaúcho, que totalizam perto de 11 mil unidades (veja detalhes no infográfico). Deste universo, 30% estão em obras.
A iminente mudança de endereço de Priscila da Silva, após mais de um ano de espera, deverá colocar fim a um martírio que ainda aflige milhares de pessoas afetadas pela tragédia do ano passado. A água não apenas destruiu a casa onde vivia com o marido e três filhos de dois, nove e 14 anos, mas também corroeu a integridade familiar da manicure. As dificuldades impostas pela perda do antigo lar levaram à separação do casal. Mesmo assim, por não ter outro abrigo, a manicure teve de se alojar na casa da ex-sogra.
— Passei por várias casas, perdi o marido, agora estou com a sogra porque não tenho outro lugar. Durmo na sala com os dois menores, e o mais velho fica em outro quarto. Peguei a chave de um apartamento em Canoas, mas preciso me organizar para ir, conseguir dinheiro para a mudança. Minha expectativa é voltar a trabalhar como manicure depois de me instalar — afirma Priscila.
O titular da secretaria de Reconstrução do governo federal, Maneco Hassen, afirma que é possível analisar o balanço de entrega de moradias para as vítimas da enchente de duas formas:
— Se comparar a nossa tragédia com outras dentro ou fora do país, não tenho conhecimento de quem tenha conseguido entregar quase 6 mil moradias em pouco mais de um ano. Mas, se tu analisar o sofrimento e a necessidade dessas pessoas, por óbvio, esperar um ano é um tempo longo. A avaliação é de que o programa Compra Assistida foi um grande acerto do governo federal.
Marisa aguarda por novo lar enquanto luta contra a depressão
Desempregada mora de favor desde que perdeu a casa.Mateus Bruxel / Agencia RBS
Moradora da Capital, Marisa da Silva Santos, 60 anos, sofreu duplamente os efeitos da cheia de 2024. Além de precisar sair da casa em que vivia com uma amiga, na Rua Presidente Vargas, viu sua condição psicológica se deteriorar com a falta de um lugar fixo para viver:
— Tenho ficado na casa de conhecidos. Fico um pouco na casa da minha irmã, mas ela tem a família dela, fico um pouco na casa do namorado, mas que também está toda torta, às vezes durmo com a minha filha. Tenho problema de depressão, tomo remédio controlado, o que também atrapalha para ficar na casa de alguém. Tem dias que fico deitada o tempo todo. Preciso de um cantinho meu.
A luta contra a depressão é anterior à cheia, mas, conforme Marisa, se agravou desde o trauma de perder o pouco que tinha. Em razão disso, também não consegue trabalhar.
— Fiquei pior, agravou bem mais. Penso em arrumar um trabalho, mas não consigo por causa da minha condição. Às vezes, tenho síndrome do pânico, começo a tremer. Quando chove, fico com muito medo — complementa a desempregada.
Marisa entrou tardiamente na fila por uma casa porque, como morou em diferentes lugares e perdeu contato com antigos vizinhos, não estava bem informada sobre como encaminhar seu cadastro. Enviou as informações no começo de abril e está esperando há cerca de meio ano por uma moradia que lhe traga, enfim, um pouco de paz. Seu nome ainda não saiu nas listas periódicas que reúnem desalojados pela inundação aptos a adquirir uma nova casa pelo Compra Assistida.
— A cada nova lista, procuro meu nome. Mas, por enquanto, nada — lamenta Marisa.
Fernanda perdeu tudo três vezes até achar nova casa
Perita criminal se mudou em maio para Canoas.Duda Fortes / Agencia RBS
A cada vez que gira a chave e cruza pela porta do apartamento no quarto piso de um condomínio localizado próximo ao limite entre os bairros Igara e Estância Velha, em Canoas, a perita criminal Fernanda Farias, 42 anos, respira aliviada. A alvura do piso e das paredes da nova casa, para onde se mudou em maio, um ano depois da tragédia, contrasta com a coloração marrom escura do barro que até hoje toma conta de sua antiga casa, na Ilha da Pintada, na Capital, do chão até o forro.
— Limpei a casa da minha mãe, mas a minha nem tive coragem de limpar. O chão cedeu em alguns pontos, e a tesoura (estrutura de madeira) que segura o telhado também se deslocou. Ficou impossível de morar lá — conta Fernanda.
Não foi por falta de insistência. A perita criminal perdeu praticamente todos os móveis na enchente de setembro de 2023, voltou a vê-los submergir na cheia de novembro do mesmo ano e, após se reerguer novamente, foi obrigada a deixar de vez o terreno onde vivia desde criança quando o Guaíba se elevou até o teto da casa de madeira a ponto de deixá-la inabitável, em maio de 2024.
— Quando eu consegui entrar nessa porta, com a chave desse (novo) imóvel, foi um alívio. Pensei: não vou perder mais nada que eu colocar aqui dentro. Não vou perder uma cozinha nova, que eu estou colocando, não vou perder a minha geladeira, minha cama, meu sofá, que ainda estou pagando em parcelas — conta Fernanda, emocionada, apontando para a porta do apartamento atrás de si.
Apesar de ter se mudado com os quatro filhos (de oito, 15, 20 e 23 anos) para a cidade vizinha, ela continua se deslocando quase diariamente para a região das Ilhas de Porto Alegre, já que assumiu de forma voluntária o trabalho de ajudar outras pessoas atingidas pela enchente a montar seus cadastros e enviá-los para a prefeitura da Capital, a fim de, um dia, também conseguirem um novo lar distante do perigo das enchentes.
O que dizem a União e o Estado sobre o andamento dos programas
Governo do RS
Por nota, a Sehab sustenta que, "além da dificuldade de identificar terrenos aptos, fora da área de alagamentos e situação de risco, houve problemas com a empresa vencedora da licitação. Em reunião, no inicio do mês, os gestores da KMB admitiram falhas e problemas técnicos que resultaram no não cumprimento do prazo determinado, razão pela qual a companhia foi notificada pela Sehab. O secretário Carlos Gomes cobrou da empresa uma data para as entregas pendentes. A ressaltar que a KMB é responsável por apenas um dos métodos construtivos em uso. O sistema de steel frame (uso de aço galvanizado na estrutura da edificação) segue normalmente seu cronograma, com obras avançadas em Nova Bréscia (25 casas) e Salvador do Sul (28). Além disso, a Sehab está elaborando uma nova licitação para o sistema modular de construção." O investimento é de R$ 402,3 milhões.
A secretaria também argumenta que algumas famílias atingidas pela enchente acabaram sendo contempladas em um programa destinado a combater o déficit habitacional de forma geral no Estado, o A Casa é Sua — Resiliência, que entregou 178 casas definitivas em 2024 e há mais 1.761 previstas. Mas o programa não é específico para recuperar os danos da cheia.
Governo federal
A Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul sustenta que houve uma demora inicial para desenhar e colocar em prática o programa Compra Assistida, já que foi criado do zero justamente para atender pessoas que perderam suas casas na enchente de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. Conforme o titular da pasta, Maneco Hassen, foi necessário fazer "correções e melhorias" que se estenderam por cerca de quatro meses.
Conforme o secretário, parte da demora no Compra Assistida também se deve à necessidade de controle e fiscalização dos cadastros de possíveis beneficiados para evitar fraudes.
— As regras do programa são um pouco rígidas porque a família, ao final, tem uma escritura no nome dela de um imóvel doado pelo governo. Então os órgãos de controle, os tribunais de contas, também fiscalizam — complementa Hassen.
Maneco Hassen argumenta ainda que é preciso identificar imóveis que estejam localizados em áreas seguras, com plenas condições de habitabilidade, envolvendo partes elétrica, hidráulica e estrutural, na faixa de até R$ 200 mil atendida pelo programa. A construção de imóveis novos exige mais tempo por conta da necessidade localizar áreas, aprovar projetos e o tempo da obra em si.
Fonte: GZH
Foto: Duda Fortes / Agencia RBS
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